O Dr CLIN reina absoluto – O vovô Sam

O Dr CLIN reina absoluto

O vovô Sam

Foi com um misto de espanto e desespero que o vovô Sam sentiu aquele aperto terrível no peito, ao trocar um pneu furado do seu novíssimo Bel Air 1952.

Logo aquele dia, em que ele tinha acabado de lavar o carro no jardim de sua casa naquele belo subúrbio todo arborizado. De limpar cuidadosamente as faixas brancas dos pneus, e de polir os cromados das calotas e dos enormes para choques.

Tinha ficado lindão, aquele carro tão robusto que tinha recebido o apelido de tank (isto mesmo, em analogia aos tanques de guerra). E ao mesmo tempo tão bonito com suas cores branca em cima e azul claro do meio pra baixo, estilo de pintura chamado á época de “saia e blusa”.

A alavanca de câmbio próxima ao volante dava mais espaço pra levar no chão, na frente, seu enorme cachorro de raça indefinida que adorava passear de carro e  sempre o acompanhava.

Estava doido para sair por aí com o rádio ligado, ouvindo seu programa de notícias predileto. Mas tinha que sair por aí mesmo, pois o rádio do carro era de válvulas, e se fosse ligado com o carro parado, a bateria arriava em pouco tempo.

Vovô Sam era destes longilíneos, alto e magro, com uma cabeleira  ainda farta, mas já bem branquinha. De longe, o seu tipo físico lembrava um grande cotonete.

Naquela época ainda não existia Viagra, e sobre este assunto, o vovô já tinha encerrado a conversa há algum tempo, em comum acordo com a vovó.

Decidiram a partir daí viver só pros netos. O vovô se encarregando do transporte e das compras, e a vovó da comida, que incluía ovos com bacon, torradas com geléia e sua famosa torta de maçã. Afinal, tinham que dar uma força pros seus filhos, uma geração à frente, trabalharem. E esta força era cuidando dos filhos dos seus filhos, seus queridos netos.

Mas, voltando aquele momento fatídico: esta encrenca tinha que vir logo aquele dia, em que ele estava com a agenda cheia, toda tomada de vários compromissos familiares!

Logo ele, que aos 68 anos se considerava o único “ invicto” dentre os irmãos, o único que ainda não sofrera um infarto.

O que mais o aterrorizava não era tanto aquela dor quase insuportável, e aquela sensação de morte  iminente, nem era saber que os netos estariam esperando em vão pelo “motorista” na saída da escola.

O que de fato o afligia era saber que teria que passar pelo mesmo suplício que seus irmãos mais velhos passaram.

Seriam seis semanas confinado no leito do hospital, em repouso absoluto, sem poder descer  para nada, e nem mesmo virar-se de lado sem ajuda. Tudo na cama mesmo: comida, banho, equilibrar-se na comadre para aliviar o intestino…

Se tivesse falta de ar? Punham-lhe por cima uma “tenda de oxigênio”, que limitava ainda mais seu contato com o mundo.

Se se agitava e rebelava? Doses maciças de “sossega-leão”, geralmente um barbitúrico que o deixaria grogue e de farol baixo.

A consequência  final deste cruel castigo? Alguns  meses de depressão pela frente.

Mas paciência, era este o tratamento do infarto na época. Repouso absoluto deitado no leito, para o coração cicatrizar e se recuperar.

Mas mal imaginava o vovô Sam que ao ser atendido no hospital municipal por um jovem médico, o Dr CLIN,  com formação recente, cabeça arejada e idéias novas, seria submetido a um método revolucionário de tratamento do infarto.

Este método, revelado num artigo recém publicado(1), tinha como único e avançado recurso tecnológico esse dessa foto aí…

(1) “O Tratamento da “Cadeira de Braços” na Trombose Coronariana Aguda”, Levine, Samuel, e Lown, Bernard. Journal of the American Medical Association (vol. 148, abril de 1952, p. 1365)

Isto mesmo, era somente este o recurso, e nada mais: uma cadeira com braços. Daquelas muito parecidas com a que o vovô Sam usava em seu alpendre, se sentindo um rei, com os netos sentados no chão em volta daquela espécie de trono. Ali ouviam  histórias meio verdadeiras e meio imaginárias, contadas repetidas, aumentadas, mas nunca iguais.

Vale a pena reproduzir aqui os comentários de um dos autores do artigo, Bernard Lown (2):

(2) Lown, Bernard: A Arte Perdida de Curar. P.196-201. JSN Editora Ltda. São Paulo, SP: 1997.

  • Quanto aos tratados pelo método convencional: “Ficar de cama 24 horas por dia, além de ser incômodo e antinatural, minava a força física e a determinação psicológica de recuperar-se. Na terceira semana no leito, a depressão era normal e muitos perdiam o interesse em sobreviver” .

  • Quanto aos tratados pelo novo método: “O aumento progressivo dos períodos na cadeira era um gabarito na marcha do progresso. O paciente se transformava em um participante ativo… O aspecto mais animador foi a sensação de bem estar e moral alto”.

Isto sem falar na menor incidência de tromboses e embolias, e outras complicações decorrentes de se ficar deitado prolongadamente, o que reduziu a mortalidade hospitalar em um terço.

Em poucas palavras, o novo tratamento implicava simplesmente em não manter o sujeito confinado ao leito seis eternas semanas, mas progressivamente e ao longo dos dias tirá-lo do leito e deixá-lo mais e mais tempo assentado numa poltrona com braços.

O mais incrível é que esta mudança proposta teve que enfrentar resistências de setores mais conservadores do hospital em que ele trabalhava, que diziam que ele tinha ido longe demais, inovado demais!

Dr Lown ainda tem outros atributos louváveis: é prêmio Nobel da Paz, por sua luta contra as armas nucleares ainda na época da guerra fria. (3)

(3) Através da “International Physicians for the Prevention of Nuclear War”, fundada em 1980 por ele, médico americano e pelo Dr Ievguêni Tcházov, um médico russo.

E ainda por cima é o criador do desfibrilador cardíaco, hoje cada vez mais presente em nosso quotidiano.

Neste aspecto em particular, quando do falecimento de sua mãe aos 96 anos, ele nos deu uma bela lição da diferença entre parada cardíaca e morte.

Ele e sua esposa iriam sair de casa por menos de uma hora para almoçar fora.
Disseram à nova enfermeira particular contratada para olhar sua mãe, que morava na casa deles por estar muito doente e já bastante debilitada, que se ela viesse a falecer, de modo algum deveria ser chamado o serviço de emergência, mas simplesmente aguardá-los chegar (naquela época ainda não existia o telefone celular).

Mas tal fato infelizmente acabou acontecendo.

Vejam a descrição da cena dantesca feita pelo próprio Dr Lown, ao voltar para casa:
“Mamãe jazia no chão totalmente despida com …infusões endovenosas que não iam a parte alguma, e com a pele já adquirindo a palidez de cera que distingue a morte. Uns homenzarrões troncudos comprimiam-lhe o tórax e descarregavam um desfibrilador no coração morto. Gritei…É minha mãe. Não vêm que está morta?

Eu sou médico!”. (4)

(4) Lown, Bernard: A Arte Perdida de Curar. p. 299. JSN Editora Ltda. São Paulo, SP: 1997.

Apesar da meta do Dr Lown, juntamente com outros cientistas, de afastar do horizonte a ameaça nuclear na guerra fria ter sido bem sucedida, sua outra bandeira de luta está longe de se realizar.

E por incrível, é tão ameaçadora quanto uma guerra nuclear.

Ele combate tenazmente a influência excessiva da indústria de equipamentos médicos sobre a prática dos profissionais da medicina, o que ele chama de “complexo médico-industrial”.

E ninguém com mais autoridade pra dizer isto, logo ele que criou um equipamento médico salvador de vidas.

Este fato, aliado à também excessiva judicialização da medicina (em que os médicos para evitar futuros questionamentos acabam pedindo exames dos pés à cabeça para qualquer caso, entre outras práticas defensivas) tem elevado os custos da assistência à saúde à estratosfera.

Um exemplo é a medicina americana: A tal “reforma da saúde” de que tanto se fala nos discursos políticos, entra presidente e sai presidente, deve ser vista com desconfiança, pois todo mundo quer usufruir, mas ninguém quer pagar os custos absurdos, que não significam necessariamente qualidade.

Prova disto é que a medicina americana é a mais cara do mundo, mas em qualidade de atendimento patina lá pelo décimo quinto ou décimo sexto lugar.
Claro, exames e procedimentos inúteis encarecem sem melhorar a qualidade.

O Dr CLIN tinha acabado de terminar a residência em um prestigiado hospital, daqueles sempre à frente dos avanços da ciência. E foi um dos primeiros a instituir o tratamento da cadeira de braços para os seus casos de infarto agudo do miocárdio.

Quando se mudou para sua pequena cidade do interior para começar a carreira de clínico, levou consigo todo o entusiasmo e conhecimento adquiridos na sua residência médica, e tratou o vovô Sam com o novo método. Até este tratamento “revolucionário” do vovô Sam, a cardiologia vinha caminhando com inovações que levavam séculos.

Até então os principais medicamentos realmente eficazes eram a digitalis usada para aumentar a força com que o coração se contrai, receitada sob a forma de um pó das folhas da planta de mesmo nome, também chamada dedaleira, desde há mais de duzentos anos.

Ela foi identificada por um astuto médico do Hospital Geral de Birmingham, Inglaterra, como um dos componentes de uma poção milagrosa de uma herbalista do interior, que no Brasil seria chamada “raizeira”. (5)

(5) Withering W:  AN ACCOUNT OF THE FOXGLOVE, and Some of its Medical Uses: WITH PRACTICAL REMARKS ON DROPSY, AND OTHER DISEASES. 1785.

Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/24886

Outro remédio potente mas antigão eram os nitratos vasodilatadores para aliviar a angina, sendo o seu principal exemplo a nitroglicerina, ou trinitroglicerina (TNT).

Que por sinal tinha o poder de aliviar a dor ou provocá-la, pois era usada também como explosivo, a popular dinamite, patenteada pelo famoso Alfred Nobel, aquele mesmo do prêmio.

O primeiro medicamento deste grupo (o nitrito de amilo) havia sido usado pela primeira vez em 1866, na Enfermaria Real de Edimburgo, também no Reino Unido, mas dessa vez na Escócia. (6)

(6) Brunton TL: On the use of nitrite of amyl in angina pectoris. Lancet 2: 97, 1867.

Como se vê, remédios centenários.

Já a aspirina, apesar de ser também centenária (sintetizada em 1897, patente vencida em 1917) só começou a ser usada na cardiologia bem depois.

Seu efeito antitrombótico só foi descoberto em 1971 (7) e seu uso na prevenção secundária (para aqueles que já tiveram um infarto e querem diminuir o risco de ter outro) só foi aprovado pelo FDA em 1988, ou seja 91 anos após sua síntese.

(7) Miner J, Hoffhines A. The discovery of aspirin’s antithrombotic effects. Tex Heart Inst J. 34 (2): 179–86.

Já seu uso prolongado na prevenção primária, para aqueles que querem prevenir o primeiro infarto, ainda é polêmico até hoje. Talvez ajude em casos de maior risco, mas não na população de médio e baixo risco. (8)

(8) Raber, I et cols. The rise and fall of aspirin in the primary prevention of cardiovascular disease. Lancet. 2019; 393:2155–2167.

Ou seja, não é pra todo mundo.

Na época do vovô Sam não se falava muito em prevenção.

Assim, a hipertensão arterial não tinha esta abordagem ampla e agressiva de hoje em dia, baseada na sua identificação e controle rigoroso, por ser um dos principais fatores de risco para infartos e derrames.

A pressão do vovô Sam era dezesseis e meio por dez (ou 165/100) considerada à época “OK para a idade”.

Um nível destes, hoje em dia, se deixado sem tratamento, seria considerado um verdadeiro desatino.

Na verdade também não se controlava muito a pressão alta porque os poucos remédios existentes eram terríveis e mal tolerados, e ninguém os aguentava por muito tempo mesmo.

Os primeiros aparelhos de medida da pressão para uso clínico surgiram na Itália em 1896, mas era só pra se saber como ela estava, pois levou mais seis décadas pra surgirem remédios realmente eficazes e bem tolerados para tratar a pressão alta.

 

Nada reflete melhor a capacidade que se tinha de se diagnosticar a hipertensão e ao mesmo tempo a incapacidade de tratá-la do que as medidas de pressão feitas pelos médicos do presidente americano Franklin Delano Roosevelt:
  • Em 1941 estava 188/105.

  • Logo antes da invasão da Normandia: 226/118.

  • Quando foi reeleito estava 200/100 e na Conferência de Yalta 260/150.

  • Em 12/04/1945, dia em que teve um derrame e morreu, estava simplesmente 300/190!

Isto aos meros 63 anos de idade.(9)

(9) Messerli F H, The New England Journal of Medicine, 332 (15) p 1038-1039.

Fica claro aí o nocivo ciclo vicioso retroalimentador da hipertensão: a pressão alta provoca mais pressão alta.

Os médicos viviam o paradoxo de medir uma pressão absurdamente elevada mas de não ter remédios para baixá-la.

Um tratamento como alternativa aos remédios e que tinha certa eficácia era a redução extrema do sal na alimentação.

Sim, existia uma dieta em que se comia quase que só arroz sem sal, coisa intragável para o vovô Sam, com seu hábito de comer bacon defumado e salgado todos os dias.

O sal, tão abundante e excessivo hoje em dia, na antiguidade era raro e caro, já tendo sido moeda corrente e motivo de guerras e revoltas, de tão valioso que era.

Uma dessas revoltas foi encabeçada por nada menos que o próprio Mahatma Ghandi, contra os preços abusivos do sal cobrados pelos ingleses que então dominavam a Índia.

O grande líder da independência indiana se rebelou contra o monopólio inglês do sal e o extraiu fervendo barro salgado, o que foi repetido por todos os seus seguidores, no movimento de desobediência civil chamado “firmeza na verdade“ (satyagraha).

Hoje em dia, o sal passou a ser usado aos montes pra conservar e temperar alimentos, o que gerou um consumo atual excessivo, de várias vezes a necessidade diária (em alguns casos até 10 vezes!).

Ou de duas a três vezes o máximo recomendado, piorando ou mesmo provocando casos de hipertensão arterial.

Mas os remédios atuais são tão eficazes, que não é preciso reduzir tanto o sal na comida.

Apesar de a nossa  necessidade diária ser de apenas 2 g de sal (cloreto de sódio), já é suficiente reduzir da média de 12 a 15 gramas que as pessoas costumam comer para 5 gramas por dia, nível saudável e que deixa a comida ainda palatável.

Ou seja, como não dá prá ficar medindo em gramas de sal no dia a dia, basta reduzir para um pouco menos da metade do sal que se usa pra cozinhar, e evitar o saleiro à mesa e os alimentos já “salgadinhos”.

Esta quantidade máxima (5 gramas) é recomendada não só para os que têm pressão alta, mas também para os que não querem tê-la, pois esta medida ajuda na prevenção da hipertensão.

Precisava ver a cara de espanto dos irmãos do vovô Sam tratados pelo terrível método antigo, quando foram visitá-lo no hospital e o viram confortavelmente sentado na tal cadeira de braços, trajando um robe de seda e lendo o jornal do dia!

Talvez no fundo tenham ficado um tanto revoltados, pois quando fora a sua vez tiveram um tratamento nada vip.

Mas, paciência, são os avanços da ciência.

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