Página de rosto do livro “Cardiomorphoseos”, de 1645

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Ao longo da História, o coração-símbolo teve para o homem pelo menos seis significados: Coragem, Vontade, Desejos, Emoções, Vida e Amor.

​Em latim, a palavra “cor” ou “cordis” significa coração, mas também pode significar alma ou cerne.

“Coração, meu tambor
do peito,
meu amigo cordial”

Milton Nascimento e Fernando Brant

​O primeiro significado do coração como símbolo foi o da coragem. O homem primitivo comia o coração do leão, para ter mais coragem, pois o leão era considerado o animal mais corajoso da natureza. Pensando bem, o nosso ancestral já tinha coragem suficiente, pois para comer o coração do leão era preciso primeiro… matar o leão.

Ricardo Coração de Leão (Ricardo I, rei da Inglaterra de 1189 a 1199) passou a maior parte dos 10 anos de seu reinado não administrando, mas guerreando.
Era um administrador medíocre, mas um bravo guerreiro, daí o seu apelido.
Coração e coragem têm uma raiz latina comum.​

Até hoje existe na língua inglesa a expressão stout-hearted man, cuja tradução literal seria “homem de coração forte”, mas cujo significado é “homem corajoso”.

​Em francês, a palavra coeur quer dizer coração, mas também é usada como sinônimo de coragem (La coeur me manque, isto é, “me falta coragem”).​​

 Ilustração do livro “Schola Cordis”,  circa  1600

Em torno de 1000 AC, o rei Salomão usou exaustivamente a palavra coração, com vários significados.

​Podia estar contente:

“O coração contente alegra o semblante;
quando o coração está triste, a alma se abate.”
(Provérbios 15:13)

Ou tranquilo:

“Um coração tranquilo é a vida do corpo.”
(Provérbios 14:30)

Podia ser a fonte da vida:

“Guarda teu coração acima de todas as outras coisas,
porque dele brotam as fontes da vida”.
(Provérbios 4:23)

Ou refletir o íntimo do ser:

“Como o homem imagina em seu coração, assim ele é.”
(Provérbios 23:7)​

​Em torno de 30 A.D. o órgão também expressava sentimentos como euforia, tristeza ou angústia.​

Como o coração não pode falar, estes sentimentos são postos para fora, pela boca:

“Porque a boca fala daquilo que o coração está cheio.”
(Lucas 6:45)

Podia ser usado para expressar sentimentos puros e elevados:

“Bem aventurados os limpos de coração.”
(Mateus 5:8)​

​A palavra coração aparece com profusão na Bíblia. Ao todo, 873 vezes, sendo 714 no Velho Testamento e 159 no Novo Testamento, em geral como o símbolo da disposição e da vontade do homem, e figurativamente, a fonte de todas as emoções e sentimentos.​

 Ilustração do livro “Schola Cordis”,  circa  1600

No período de 300 a 900 A.D., na América pré-colombiana, os maias tiveram jogos de bola parecidos com o nosso futebol.

“O coração de um homem modifica
o seu semblante,
Seja em bem, seja em mal.
O sinal de um coração feliz
é um rosto alegre…”
(Eclesiástico 13: 31-32)

A bola era de borracha maciça e simbolizava o Sol. Duas equipes disputavam em um campo demarcado com pedras.​ Uma das diferenças com o futebol moderno é que a bola não era tocada com os pés, mas com os quadris e coxas. Outra é que os perdedores tinham um destino diferente dos atuais. Ao time derrotado, ao invés de se “pedir a cabeça do técnico” como se faz hoje, pedia-se (literalmente) o coração do capitão do time, que tinha seu peito aberto por sacerdotes, e o órgão arrancado e oferecido, ainda pulsando, ao Sol, para que este nunca se apagasse (o coração simbolizava a vida).

​Os astecas fizeram sacrifícios semelhantes até 1519, quando chegaram os espanhóis e acabaram com este esporte, de gosto um tanto duvidoso. Infelizmente, certos times e  torcidas hoje em dia ainda apresentam comportamento semelhante, beirando a carnificina explícita, e tendem mais para um espírito de porco do que para um  espírito esportivo.

  Ilustração do livro “Schola Cordis” , circa  1600

Ano de 1595

O coração em sua expressão máxima, o Amor, maior até do que como símbolo da vida. Amor que permanece até mesmo após a morte.​

Romeu:

“-Pois jurarei:

Se o amor querido do meu coração…”

Julieta:

“-Boa noite, boa noite! Ah! Que esta doce calma

que enche o meu coração, encha também tua

alma”.

 (W. Shakespeare. Romeu e Julieta. Ato II. Cena II.
     Verona. O Pomar dos Capuleto)
 Ilustração do livro “Schola Cordis”,  circa 1600

Chegamos então a uma época de transição. O coração passou a ser retirado de cadáveres e a ter sua anatomia estudada, apesar da proibição da Igreja Católica.

​Dentre os que primeiro estudaram a anatomia cardíaca, Miguel Servet pagou com a própria vida, tendo sido queimado pela Santa Inquisição numa fogueira feita com seus próprios livros. (Apesar de todas as alegadas dificuldades da medicina em nossos dias, os médicos atuais pelo menos não correm este risco; já é alguma vantagem).​

​Buscando mais sobre a simbologia do coração ao longo da história, um trabalho de “garimpo” na biblioteca de livros raros do Colégio Caraça, nas montanhas de Minas Gerais, revelou dois livros extraordinários: “A Escola do Coração” (Schola Cordis), datado de 1600, e o “Cardio Morphoseos”, de 1645.​ Seu valor é amplificado pelo fato de terem sido salvos no incêndio do colégio em 1968, em que a maioria dos livros da sua famosa biblioteca se queimou.

​Em ambos, pode-se observar a variedade de situações em que o coração era utilizado para simbolizar emoções e sentimentos, no aspecto sacro e religioso e nas suas relações com o humano. Das dezenas de ilustrações existentes nestes dois livros, algumas ilustram este artigo.​

​Os livros naquela época deviam ser raros e caros, e o Cardiomorphoseos, apesar de impresso em Verona em 1645, passou pelas mãos de alguém em Roma em 1878 que fez anotações manuscritas à margem.​

​Os textos são em latim e, como era de se esperar para uma época em que ainda se via no horizonte a fumaça das fogueiras da Santa Inquisição, logo no começo dos livros há uma página em que se lê: “Censvra … Archipresbyter Bruxellensis, Librorvm Censor”.

​Depois, foram parar no Colégio Caraça, fundado pelo misterioso irmão Lourenço, eremita dos anos 1700, e berço de notáveis, como os presidentes Afonso Pena e Artur Bernardes, que lá se formaram, e lugar de trânsito de figuras da monarquia, como os próprios Imperadores Pedro I e Pedro II. Este último tem uma passagem famosa por lá.​

​Reza a lenda que sua majestade D, Pedro II foi descer uma escada no jardim, escorregou e pimba! Caiu assentado numa posição nada majestática.

Como homenagem, a pedra da escada que sofreu o impacto direto dos reais traseiros foi devidamente cercada, e nela esculpidos o brasão do imperador e a provável data da façanha.

Pedra na escada do Caraça onde Sua Alteza Real depositou sua derriére..

Ano de 1799

Já se imaginava o coração, além do simbólico, um órgão passível de adoecer e provocar males físicos.

​O Dr William Withering descreveu os efeitos da digitalis, que foi o primeiro medicamento efetivo para o coração. A informação sobre os efeitos desta planta (dedaleira) teria sido passada a ele por uma feiticeira inglesa. Relato, aliás, digno de crédito, quando vemos hoje, às portas do século XXI, pajés da Amazônia sendo inquiridos por “olheiros” de empresas de alta tecnologia, para dizer o que sabem sobre as plantas locais.

​​Como se vê, ao longo da História, o mágico e o racional coexistem lado a lado, ou avançam e retrocedem, num plasma incrível, para forjar o conhecimento científico.

​Em 1890, um século depois, o “Formulário”, do Dr Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, médico português de ascendência polonesa e que trabalhou no Brasil, dava receitas de como preparar as folhas da digitalis.

​Nesta época, o folhear aflito das páginas deste livro era a primeira coisa que se fazia em casa em caso de doenças. (Hoje, folheia-se aflitamente o catálogo ou a agenda doméstica, à cata do telefone do médico ou do hospital).

 Ilustração do livro “Schola Cordis”,  circa  1600

​Tempos atuais. A sábia sabedoria popular, fazendo analogias entre o superficialismo da face e a profundidade do coração:​

“Quem vê cara não vê coração”
(Dito popular)​

​“É fácil beijar o rosto, difícil é chegar ao coração”
(Parachoque de caminhão)

​​Até Chico Buarque andou misturando sentimento com anatomia:

“Se na bagunça do teu coração meu sangue errou de veia e se perdeu”
(Eu te amo)

​E Drummond:

“Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores”
(Mundo Grande)​

​E cita Branca de Paula:

“O coração do poeta está sempre na berlinda. Desde criança, sofre males incuráveis: melancolia crônica, saudade não sei de quê, nostalgia em banho-maria, euforia aguda, paixão fugaz, estranhamento, deslumbramento”.
(Mesa redonda “O Coração em Debate”, Belo Horizonte, 08.06.97).

 Ilustração do livro “Schola Cordis”,  circa  1600

Ano de 1967

Os homens modernos se tornaram solitários; e seus corações também. Pessoas de corações solitários se organizam em comunidades e clubes, buscando afastar a solidão.

​Os Beatles fizeram uma brincadeira com o nome de uma música, que tem tudo a ver com a nossa época: “A Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pepper” (Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band).

​Atualmente, os “Lonely Heart’s Clubs” encontram-se aos montes na Internet, onde os corações tentam encontrar parceria, seus “heart mates”, numa versão eletrônica dos velhos correios sentimentais.

​Neste caso, o coração passa a ser usado para expressar não só o amor… mas principalmente a falta dele.​

​Ano de 1967 de novo

O primeiro transplante cardíaco. O coração é retirado ainda pulsando do doador, e repassado a outra pessoa.​

​Para que isto fosse possível, o próprio conceito de morte teve de ser revisto, passando a ser definido quando o cérebro cessa definitivamente suas funções, mesmo que o coração continue batendo.

​Teria o coração finalmente sido desbancado como o símbolo da vida?

A resposta é: provavelmente não.

Se olharmos para o passado, poderemos fazer algumas comparações no mínimo estranhas.

​Os sacerdotes maias e astecas com seu medo do Sol se apagar, retiravam um coração ainda pulsando e o ofereciam ao Sol, como símbolo da vida, para que este nunca se apagasse.​

Da mesma forma, o cirurgião hoje retira o coração do peito do doador, ainda pulsando, e o transfere a outra pessoa, significando para ela… a vida!

Ilustração  do livro “Cardio Morphoseos”, de 1645
Provável origem do título desta ilustração: A Biblia, no Cântico dos Cânticos de Salomão, 2:5
( da esposa para o esposo) : 
“ fulcite me floribus stipate me malis quia amore langueo”
(Sustente-me com flores, conforte-me com maçãs, que padeço de amor)No entanto, em seguida surgem termos como febris (febre), podagra (gota), nephritis (nefrite), cólica, disuria (desconforto ao urinar), hidrops (hidropisia), o que faz crer nas tradições das iluminuras antigas, da oposição do bem e do mal na mesma figura. Observa-se  que as flores de um lado “expulsam ”as doenças, forçando sua saída pelo  outro lado. 

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