Agora, a vez do Dr. CAT – João Moderno

Agora, a vez do Dr. CAT

João Moderno

E do João Moderno

 

Eram sete da manhã de um dia útil qualquer, quando o quarentão e solteirão João Moderno, ainda meio dormindo e meio acordado sentou-se ao volante de seu novíssimo jipão importado modelo 2001.

Ele morava sozinho, mas era chique ter um carro daquele tamanho, com espaço com folga para sete pessoas. E que tinha tração nas quatro rodas e mais uma infinidade de recursos high tech para não atolar no barro, todos devidamente nomeados por siglas em inglês. Mesmo que o carro nunca tivesse visto e nem fosse jamais ver barro na vida, nem no retrato.

Tinha também um sistema GPS que era uma beleza. Podia-se escolher em qual idioma se queria ouvir as instruções, e se numa voz masculina ou feminina.
O nosso João particularmente preferia aquela vozinha amável de uma mocinha a orientá-lo para que nunca se perdesse no trânsito, apesar de ele saber de cor todos os caminhos em que andava.

João tinha no seu celular uma agenda dos telefones mais importantes. Dos colegas bacanas que sempre o convidavam pras festas e quetais. E das moças bacanas que sempre atendiam sem muita dificuldade seu convite pra um jantar, e o que mais rolar depois.

Vaidoso, de suas peças de vestuário nada era nacional. Tudo importado mesmo, até um sapato que comprou nos States e depois descobriu ser made in Brazil.
Mas e daí? Era importado ou não era? Óculos escuros? Tinha um diferente para cada dia do mês. Idem pras calças jeans. E pros tênis. E pras camisas. E pros…

No seu apê todo decorado por peças de grife, ele tinha coisas que nem se lembrava mais que tinha, destas que se compra caro numa viagem, na base da empolgação do momento, depois são colocadas num canto qualquer e pronto. Nunca mais são sequer lembradas.

Enfim, toda a sorte de badulaques que uma pessoa comum pode passar várias vidas sem usar, e sem sentir falta de nenhuma delas.

Então, subitamente veio aquilo.

Náuseas, queimação no estômago, tudo o que vinha sentindo de uns tempos para cá, mas agora mais forte, provocando suor frio e enjoo.

Esta dor de “estômago” habitualmente cedia com uma pastilha de  antiácido  que sempre trazia no bolso. Só que desta vez não cedeu.

Logo aquele dia, em que estava pra lá de apertado. Teria que responder todos os seus e-mails e checar as mensagens em seus dois celulares e fazer os contatos e reuniões matinais e depois mergulhar num dia que, se tivesse 25 ou 26 horas, talvez fosse suficiente para sobrar tempo pra aquele programa de caminhadas que estava planejando há um ano.

Nosso personagem desta vez não fumava nem tinha pressão alta, mas vivia “ligado em 220 volts” o tempo todo, não sossegando nem nas poucas horas em que dormia. Seu sono era agitado. “Pedalava” a noite inteira. Por vezes trabalhava dormindo e acordava subitamente sobressaltado, no meio da noite.

O stress que era sua vida o impedia de se cuidar o mínimo que fosse. Tinha horror a pensar em perder tempo para ir ao médico, descansar ou passear.

Este comportamento alucinado talvez pudesse explicar em parte porque o infarto no avô do nosso João tinha acontecido com ele já idoso, mas agora estava ceifando vidas mais e mais jovens e em plena idade produtiva.

Bom, pensou ele, vou dirigindo até o escritório e lá vejo o que faço. Mas no caminho, a coisa ficou preta, a começar pelo escurecimento visual e sensação de desmaio.

Quando recobrou a plena consciência sentia frio, fustigado pelo ar condicionado da sala de cateterismo cardíaco, onde o Dr CAT apareceu logo, já lhe explicando o que seria feito e ao mesmo tempo já fazendo, sem muita cerimônia.​

Um cateter seria enfiado em uma artéria da virilha e dirigido até suas coronárias.
Aquela que tivesse a obstrução seria imediatamente dilatada por um balãozinho, e a seguir colocada uma armação tipo “molinha de caneta”, para se tentar evitar que o vaso fechasse de novo.

Não precisaria abrir o peito, mas teria que fazer controles frequentes, pois a tal molinha volta e meia resolvia fechar e ele teria que passar por tudo aquilo de novo.

No caso do nosso João, que teve um quadro de síndrome coronária aguda, a angioplastia teve um papel fundamental, pois foi feita na “janela de tempo correta”, poucas horas após o início dos sintomas do que poderia ter sido um baita infarto.

É a chamada angioplastia primária, feita quando a coronária se fecha de repente, subitamente, que demonstrou ser salvadora de músculo cardíaco e de também interferir favoravelmente na sobrevida.

Ao contrário, a angioplastia feita em casos não agudos, na chamada angina estável, ou angina crônica, em que as obstruções vão se formando aos poucos e não há um quadro agudo, não prolonga a vida, mas apenas alivia os sintomas.
O que pode ser útil nos casos de angina que são ou se tornaram mais rebeldes, nos quais os remédios não estão resolvendo ( se os remédios resolverem, não está indicada a angioplastia)

Esta história passada pelo nosso personagem começou com um alemão, Andreas Grüntzig, quem em 1977 dilatou uma coronária de um paciente na Suíça com um tosco cateter balão artesanal “fabricado na cozinha”.

Isto gerou um espanto geral, e certa revolta e muitos resmungos do Dr CIR, que até então reinava absoluto.

E achava que tinha razão, pois já em 1990 mais casos de coronárias obstruídas eram tratados com o tal balão do que com as pontes de safena. Mas o vaso dilatado com balão às vezes voltava a se fechar.

Ao final da década de 90 este recurso foi associado ao implante do stent, a tal molinha, que nada mais é do que um suporte estrutural para tentar evitar a recorrência do fechamento.

Coube a Julio Palmaz, médico argentino, desenvolver o primeiro stent bem sucedido.

Após experimentar materiais simples, como arames, ele tentou com uma malha metálica que achou casualmente no chão de sua garagem. (Aqui mais uma vez aquela expressão: “o acaso favorece as mentes preparadas”; ou: “só achamos aquilo que estamos procurando”; ou ainda: “na rua só cumprimentamos quem a gente conhece”).

O que aconteceu a seguir já é até citado em textos sobre invenções (1):
“Após testar o dispositivo em porcos e coelhos, Palmaz fechou uma parceira improvável com Phil Romano, empresário do ramo de restaurantes, e o cardiologista Richard Schatz, do centro médico militar de Brooke, nos Estados Unidos.

(1) Challoner, Jack, (editor): 1001 Invenções que mudaram o Mundo.

p. 892.  Sextante. Rio de Janeiro, RJ : 2010.

O trio adotou o nome Parceria do Enxerto Expansível e patenteou o stent endovascular em 1988”.

Melhorou, mas ainda ocorriam reestenoses “intrastent” devido a algumas pessoas terem uma reação cicatricial mais acentuada (nada mais seria do que um tipo de queloide) ao trauma do implante desta endoprótese.

Hoje, muitos destes stents têm sido revestidos com remédios para tentar impedir este “queloide”.

Remédios estes que apesar de supermodernos, foram encontrados na natureza.
São eles a rapamicina e o paclitaxel, e depois uma série de sucedâneos similares.

“O Senhor fez a terra produzir os medicamentos;

O homem sensato não os despreza”

Eclesiástico 38:5

​A rapamicina é produzida por um micróbio (um fungo actinomiceto: Streptomyces hygroscopicus) achado numa amostra de solo da ilha de Páscoa (que é chamada pelos indígenas locais de Rapa Nui).

A ilha nada mais é que um conjunto de três vulcões extintos, e é mais conhecida pelos seus moais, estranhas esculturas de pedra de tamanho descomunal.
E agora está sendo conhecida também por um ser microscópico, um simples fungo.

Já o outro remédio, o paclitaxel é retirado da casca da árvore chamada teixo, do gênero Taxus, a mais conhecida a Taxus baccata, todas muito tóxicas (o que reforça a antiga expressão de que “todo veneno é remédio e todo remédio é veneno, depende apenas da dose e do modo de usar”).

O teixo era muito usado nos belos jardins ingleses era também a matéria prima para fazer arcos e flechas como os de Robin Hood.

Estas molinhas revestidas com rapamicina e paclitaxel tem uma fama boa e outra ruim. Custam muito mais a entupir do que a comum, mas quando entopem… É uma encrenca só, da qual é difícil sair.

O Dr Grüntzig não viveu para ver todo este rebuliço que ele havia iniciado.
Revivendo aquelas histórias de heróis com fim trágico, ele morreu juntamente com sua esposa quando seu avião bimotor Beechcraft Baron que ele mesmo pilotava caiu na Geórgia, Estados Unidos, em 1985.

O Stress do João Moderno

“Meu coração se contrai, acostumado a sofrer

Vida triste esta minha,

eu passo a noite inteirinha suspirando sem querer”

Trecho da querumana “Boca da Noite”, de Zé Mulato e Cassiano

O trecho ao lado de música define à perfeição dois dos sintomas clássicos do estado ansioso: o aperto no peito, ou angústia, e a dispneia suspirosa. Muito comuns no indivíduo estressado.

O termo stress, que inicialmente foi usado em engenharia para significar o quanto uma estrutura suporta antes de quebrar, passou a ser usado em medicina com propósitos similares, para indicar situações limite.

A correria do João é para alcançar o inalcançável: o que o seu mundo considera um padrão ideal. É um padrão de perfeição, de sucesso e também de beleza.
Não admite nada fora disto.

Fraquezas, defeitos físicos ou emocionais, fracassos, aparência inadequada?
Nem pensar.

Até o relógio de pulso tem que ser do melhor. O celular? Quanto mais recursos mirabolantes melhor, mesmo que não utilize nem 10% deles.

Estes gadgets têm que ser os mais caros e modernos, porque são visíveis o tempo todo, junto com as roupas e todos os adereços masculinos e principalmente femininos. Afinal, o admirado no seu tempo é a aparência e a riqueza, muitas vezes não importando se se chegou a elas por meios éticos ou nem tanto.

“Os fins justificam os meios”.

Nos tempos do avô do João, as coisas eram diferentes: a honestidade e a lealdade eram virtudes admiradas, e havia plena coerência entre o viver e o ser.
Para se alcançar estes atributos “antigos” só mesmo com muito esforço pessoal, e como eram qualidades intrínsecas e imateriais, não se corria o risco de serem roubadas ou perdidas.

Hoje o bacana é ser rico e bonito, independente do grau de esforço que se fez (ou não se fez) para se atingir estas “qualidades”, que frequentemente são instáveis e passageiras, geram inveja e competição, e no fundo não trazem segurança nenhuma a longo prazo.

Isto porque o sujeito sabe que nem sempre os obteve através de mérito pessoal ou grande esforço, e que pode perdê-las a qualquer momento.

A beleza jovem, como é exigida pelos padrões atuais, é sempre passageira.
E o dinheiro hoje em dia troca cada vez mais rapidamente de mãos.

O resultado lógico? Amizades e mesmo vínculos familiares instáveis e com laços precários, que se rompem ao primeiro solavanco. Insegurança, desconfiança, stress…

E o que dizer de um mundo que quer ir cada vez mais rápido?
Das cidades cujo trânsito, na chamada “hora do rush” (correria, em inglês) deveria se chamar” hora do stop”, porque ninguém anda?

E a ampulhetinha do computador, símbolo da nossa falta de paciência?
A ampulheta original marcava um tempo que passava sem pressa. A do computador marca segundos que duram séculos e nos deixam à beira de um ataque de nervos.

Mas nada disso se compara ao o supra sumo da tortura!

Nem os monges dominicanos da Idade Média que escreveram um manual inteiro sobre torturas que talvez seja o livro mais infame jamais escrito (2), nem eles imaginaram uma coisa tão perversa: Os call centers!

(2) KRAMER H, SPRENGER J.  Maleus Maleficarum. 1486. “O Martelo das Bruxas”. É um manual  técnico de interrogatório e torturas variadas, que incluíam ferro em brasa, para que as suspeitas de bruxaria confessassem.

É claro que confessavam.

E, ironia das ironias, muitos deles de empresas de comunicação telefônica, com as quais ninguém consegue se comunicar por telefone.

Após passar com os nervos ainda meio inteiros por várias gravações, você chega a uma pessoa de carne e osso. Está tudo resolvido? Que nada. “ Um momento senhor… só mais um momento… é que o nosso sistema hoje está lento… vou estar transferindo o senhor para o setor (ir)responsável… e o tu-tu-tu da ligação que caiu!

E aí você vai estar recomeçando o calvário do zero, como o mito de Sísifo (3).

(3) O Mito ou Lenda Grega de Sísifo: Por toda a eternidade a alma de Sísifo, devido a uma série de faltas graves cometidas  em vida,  foi condenada a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, obrigando-o a reiniciar todo o esforço do zero. Por esse motivo, toda tarefa que envolve repetições monótonas, cansativas e infrutíferas passou a ser chamada de “Trabalho de Sísifo” .

Por falar em mito, Pan era o deus dos bosques na mitologia grega, um ser meio homem meio bode, que vivia nas grutas das florestas e tocava uma flauta de bambu.

Viajantes que tinham que atravessar florestas à noite eram assaltados por pavores súbitos, sem causa aparente. Era medo mesmo. Mas como não queriam reconhecer e aceitar que tinham medo, davam como explicação que o tal Pan surgia e os assustava. Explicação esta prontamente aceita, pois afinal de contas um homem com orelhas, chifres e pés de bode deveria ser de uma feiura só!

Estes pavores súbitos atribuídos a Pan deram origem a que palavra? Pânico!

Pronto. Temos o nome da síndrome que tanto sofrimento causa, fruto do desgaste da vida moderna.​

“É que a saudade no peito
fez enchente, fez represa
E a lágrima é o ladrão
que dá vazão à tristeza.
Se não chorar, este açude
vai explodir na certeza
Cada lágrima que cai, portanto é nossa defesa.”
Trecho da toada “Lágrima”,
de Zé Mulato e Cassiano

 

No contexto moderno, demonstrar qualquer sentimento que indique fraqueza é incompatível com a figura do homem moderno perfeito, o que obviamente só piora as coisas.

Procurar extravasar os sentimentos, compartilhá-los, dividir as angústias com outros é sempre uma maneira saudável de se aliviar de um pesado fardo, mesmo que o ouvinte não resolva nada, só te escute chorar suas lamúrias e se mostre solidário.​

E lá está o nosso João Moderno, saindo do hospital com a recomendação (que ele considera quase impossível) de desacelerar, se cuidar, controlar seu stress e seus estados de humor, e combater o sedentarismo, fazendo um mínimo de exercícios regularmente.

O Dr CLIN reina absoluto – O vovô Sam

Surge o Dr. CIR – José Brasil

Agora, a vez do Dr. CAT – João Moderno

O retorno em grande estilo do Dr. CLIN – Bete Trintona

O Futuro Presente – Chico Futuro