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Limone Sul Garda é um típico vilarejo italiano daqueles vistos nos filmes, nos quais sonhamos em passar uma temporada, quando nos aposentarmos ou ficarmos ricos.

Casinhas cor de tijolo ao redor de uma igreja, um brilhante lago azul em frente,

já admirado na época do império romano, e por detrás as montanhas.

Apenas 1.034 habitantes, sendo que em 1861 eram 548. Ou seja, levou um século e meio pra dobrar a população!

Isto dá uma idéia de como a vida lá deve passar lentamente.

O nome da vila se refere a duas coisas típicas do local: o lago de Garda e os limoeiros.

Seus moradores dizem que é o lugar mais ao norte da Itália onde se pode cultivar os famosos limões sicilianos, trazidos da quente e ensolarada Sicília, ilha que fica lá embaixo, bem ao sul do mapa, onde é chutada pela bota.

Assim, apesar do clima mais frio eles podem colher limão direto do pé pra tomar uma fresca spremuta de limone. Ou beber após a sobremesa uma ou duas doses de limoncello feito em casa.

Nem que para isto cheguem a plantar os limoeiros dentro da própria casa, em aconchegantes jardins de inverno envidraçados (as orangeries).

Mas na maioria das vezes as plantas ficam em vasos enormes lá fora no jardim, que no inverno são levados para dentro num espaço apropriado chamado limonaia.

Limone fica bem ao norte mesmo, em Brescia, na Lombardia. Mais um pouco e se chega nos Alpes Suíços, ou na Áustria.

Ficou isolada até 1932 quando uma estrada primorosa, a Via Gardesana, obra prima da engenharia com seus inúmeros túneis e pontes, permitiu que o mundo e os turistas chegassem até lá de carro.

Mas foi só em 1979 que ela ficou mesmo famosa, quando um cidadão limonês foi fazer exames em Milão.

Os médicos ficaram atônitos: apesar de níveis de colesterol total e triglicérides nas alturas, o sujeito não tinha nenhum sinal de placa de ateroma! Nenhuma obstrução nas artérias! E ainda por cima tinham o colesterol HDL, o tal protetor, em níveis baixos!

Buscaram seus três filhos e fizeram os exames: dois tinham o mesmo achado.

Mas que história é esta? O esperado era que pessoas com estas alterações (colesterol e triglicérides muito elevados e HDL muito baixo) já estivessem com vários entupimentos pelo corpo. E eles não tinham nada?

Os doutores então correram pra Limone, examinaram seus habitantes e pimba! Muitos tinham os mesmos achados, e mais: eram todos da mesma família, descendentes do casal Cristoforo Pomaroli e Rosa Giovanelli, que se casaram em 1644.

O isolamento que os limoneses viviam antes da chegada da estrada propiciou muitos casamentos consangüíneos, e aí a genética fez sua parte. O que normalmente é um problema (consangüinidade), aqui foi benéfico.

Um gene “do bem” passado adiante por várias gerações fazia com que o sangue dos seus portadores tivesse um “super HDL”, uma potente mutação do HDL.

Na verdade, os níveis de HDL eram sim baixos, mas era uma mutação do HDL, em que pouco valia muito, em que cada HDL destes deveria valer vários dos HDL habituais, “superfuncionante” e superpotente (as partículas são maiores e mais densas), que os protegia de doenças cardiovasculares.

Isto explicava porque eles não tinha nada de anormal nas artérias, apesar do colesterol total e dos triglicérides muito elevados.

O potencial dano que estes últimos provocariam era anulado pela proteção do tal HDL mutante. (1)

Como foi esta descoberta em Milão, esta mutação recebeu o nome de Apo-A1 Milano (apo de apolipoproteina, que é a principal proteína componente do HDL, que apesar de chamarmos de HDL colesterol, é uma lipoproteína, isto é formada de um lípide, que é o colesterol e de uma proteína, a Apo-A1).

Mas por justiça deveria ser Apo-A1 Limone! Esta Apo A-1 era especialmente potente em fazer o tal “transporte reverso do colesterol”: retirá-lo da circulação e também das paredes das artérias e levá-lo para o fígado, para ser metabolizado e eliminado.

A Apo A-1 não é propriamente um remédio, mas uma proteína especial fabricada pelo corpo e que carrega gorduras. Seria como um caminhãozinho vazio passeando pela circulação sanguinea e carregando em sua caçamba todo o colesterol que encontrar. Quando se enche de colesterol, ai sim ele este caminhãozinho que estava vazio (a Apo A1) muda de nome e passa a se chamar HDL, que nada mais é do que uma associação de proteinas com gorduras, uma lipoproteína.

O diferencial que o torna “do bem” é o que ele faz com o colesterol que ele carrega: despeja-o diretamente no fígado, que é a usina que vai queimá-lo. É o contrário do que faz o LDL, que despeja o colesterol direto na circulação, que em excesso vai entupir as artérias.

Como é uma partícula complexa demais para ser sintetizada em laboratório, recorreu-se à engenharia genética, ensinando bactérias a fazê-lo.

Estava pronta a apo A1 recombinante.

Primeiro os testes com animais, e depois com humanos com placas de gordura nas coronárias, feitos na prestigiosa Clínica Cleveland, nos Estados Unidos, a mesma das pontes de safena.

O resultado foi como esperado, uma boa regressão nas placas, com uma injeção semanal por apenas cinco semanas, muito maior do que o máximo que já se tinha conseguido até então com outros remédios (2)

O grande nó é que, exatamente como as primeiras doses de penicilina, a apoA1 recombinante ainda tem três graves limitações: é rara, cara e só existe na forma injetável.

Mas é uma questão de tempo, interesse e investimentos.

Para se ter uma idéia da raridade da penicilina nos seus primórdios, em março de 1942 foi tratado um paciente com septicemia, no qual foi usada simplesmente metade de todo o pequeno estoque deste antibiótico existente no planeta!
Em junho do mesmo ano a coisa evoluiu, e já havia penicilina no mundo disponível para tratar dez pacientes! A partir daí a evolução foi tão rápida que para a invasão da Normandia em 1944 o esforço de guerra já havia produzido mais de 2 milhões

de doses!

No caso da penicilina, a guerra acelerou as coisas, permitindo um avanço razoavelmente rápido: da descoberta por Fleming em 1929 até 1944 se passaram 15 anos.

A primeira estatina para baixar o LDL teve sua descoberta pelo japonês Endo em 1976 e até o seu lançamento no mercado em 1988 se foram 12 anos.

As patentes dos medicamentos duram 20 anos, a contar do registro inicial da molécula descoberta. Os primeiros dez anos destes vinte são gastos em pesquisa, no começo com animais, depois com voluntários sadios e finalmente em grandes estudos clínicos, agora já com pessoas que têm o problema alvo do medicamento.
Então, correndo tudo bem, é lançado no mercado e a empresa descobridora tem então mais 10 anos até completar os vinte e aí expirar a patente, para correr atrás e recuperar todo o investimento que fez, em geral na casa de centenas de milhões de dólares, e obviamente tirar algum lucro. Lucro este que no caso particular das estatinas, devido ao seu estrondoso sucesso, é de bilhões de dólares.

Isto tudo levado em consideração, a questão do HDL bem que está demorando. Afinal, o tal super HDL de Limone foi descrito em 1980, e só em 2003 (23 anos depois) veio o trabalho da Cleveland Clinic já citado, com o primeiro HDL “fabricado”.

E daí para um lançamento no mercado ainda não há nenhuma previsão.

Pode ser que em parte esta demora se deva exatamente ao grande sucesso das estatinas, que só agora dão algum sinal de esgotamento, de terem chegado ao máximo de seu potencial: reduzir o risco mesmo em indivíduos com LDL colesterol normal.

Exaurido o horizonte do LDL, então o HDL passou a ser a bola da vez, mas a coisa não parece ser tão fácil como o caso do seu parente vilão.

Para complicar, descobriu-se que existem várias subfrações do HDL, e que aumentar o HDL total não significaria obrigatoriamente benefício, se não se souber qual subfração dele está sendo elevada, e qual afinal deve ser efetivamente elevada.

A indústria teria que nos disponibilizar um HDL (ou apo A1) em cápsulas, para ser tomado por via oral. Fazê-lo em grande escala através das bactérias custa caríssimo!

Vamos ter que aguardar a coisa evoluir.

Já estão alterando o gene de algumas plantas para fabricá-lo, com boa redução do custo, mas ainda vai demorar um bocado.

Também a penicilina primeiro só existia via injetável, em quantidades mínimas, e depois passou a ser sintetizada em laboratório e disponibilizada via oral, e a um custo irrisório.

Por outro lado, nosso organismo já fabrica o HDL, em umas pessoas mais, em outras menos.

Não é o super HDL de Limone, mas também é muito bom, desde que nas proporções adequadas para se atingir o número mágico.

Então, neste aspecto do HDL ainda estão em fase de pesquisa medicamentos que possam melhorar sua quantidade no organismo, e principalmente sua função benéfica.

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