Surge o Dr. CIR – José Brasil

Surge o Dr. CIR

José Brasil O Cinquentão

Um belo dia José Brasil, cinquentão e pai de dois adolescentes, passou a achar que o seu Opala cupê 1979 zero km recém adquirido através de um consórcio, com teto de vinil e rodas cromadas, estava ficando estacionado mais longe do que o habitual.
Seu xodó com aquele carrão novo o obrigava a chegar cedo pra achar uma vaga na sombra, no enorme estacionamento da fábrica.

Ele era destes mulatos que um dia já foram fortões, mas que com o tempo a barriga de chopp vai escondendo pouco a pouco os músculos, remodelando a silhueta de quadrada pra arredondada. Os botões da camisa estufados, deixando entrever a pança por debaixo, davam a impressão de que a qualquer momento iam arrebentar todos de uma vez. Como o cinto não conseguia fazer sua função, a calça volta e meia ia querendo cair, deixando exposto o cofrinho, obrigando o Zé a puxá-la periodicamente pra cima, como as moças com seus vestidos tomara-que-caia.

Zé Brasil tinha sido um grande peladeiro no bairro, mas nos últimos tempos só pegava na bola quando esta por acaso chegava até ele, e nunca o contrário.
Como não vinha dando mais conta, ficava encarregado de organizar o “pós pelada”, a “resenha”, o churrasquinho com cerveja e o pagode que sempre rolava.

Com o passar dos dias, o Zé cansava mais e mais pra chegar ao carro, que parecia ter ficado mais e mais longe. Sentia neste momento até mesmo uma espécie de angústia no peito. Mas, diacho! O carro estava lá, na mesma sombra da mesma árvore, que estava no mesmo lugar de sempre!

Ao procurar o serviço médico da empresa, não teve como escapulir: para um sintoma que só aparecia com o esforço, nada melhor que um teste de esforço, o popular teste ergométrico, com o objetivo de averiguar porque o Opala ficava cada vez mais longe.

A expressão “aperto no peito” tão usada pelos poetas, aqui tinha um significado mais físico. A angústia que ele sentia no peito era angina mesmo. Aliás, ambos os termos, angústia e angina, tem um radical comum, angst (1), que significa exatamente aperto.

(1) O termo Angst tem origem no século VIII, da raiz Indo-Europeia anghu  (constrição) levando depois ao alemão antigo angust. Tem raiz comum ao Latim angustia (aperto) e angor (sufocamento).

A seguir uma cinecoronariografia confirmou: o motivo da lonjura do Opala e do aperto eram suas três coronárias bastante entupidas, e com uma obstrução especialmente grave no tronco principal da coronária esquerda.

Poucos dias depois, e lá estava o Zé frente a frente com o Dr CIR, o rei do hospital.​
Nesta época, qualquer grande centro de cardiologia que prestasse teria que fazer muitas e muitas cirurgias cardíacas, e os serviços de cirurgia cardíaca se hipertrofiaram a tal ponto que todo o hospital era apenas um apêndice do Dr CIR e sua equipe, e não o contrário.

A cirurgia seria uma dureza: o peito serrado ao meio, coração e pulmões parados, substituídos por uma máquina, mangueiras e fios pra todo lado e o depois?
Depois um tubo na garganta e dores, muitas dores pós-operatórias.
Até muito tempo depois ele ficaria em dúvida de qual fora pior: as dores do peito serrado ou aquele maldito tubo na goela. Mas afinal de contas, pra grandes males, grandes remédios, ponderou.

No seu caso em particular, devido às obstruções serem bem onde começam as três coronárias, as pontes de safena e mamária serviriam não só para aliviar seus sintomas, mas também para prolongar sua vida.

No CTI, já operado, ele tentava se lembrar do Opalão pra se aliviar da agonia. Estes carros tinham fama de durar muito, e o nosso personagem queria durar mais ainda, até ver seu carro “cair de quatro” de tanto uso. Ainda iria muitas e muitas vezes ao estádio torcer pro seu timão, levando junto seus sete ou oito amigos, todos devidamente entulhados lá dentro, semisufocados mas felizes. Iria pros sambas aos sábados, depois daquela tradicional feijoada, regada a muita cerveja e caipirinha, que tinha hora pra começar mas nunca tinha hora pra acabar.

Zé lembrava-se de detalhes do carro, tão de seu agrado.
Seus acessórios na moda, como a buzina de dois tons, calha no vidro pra não entrar chuva, olhos de gato nas portas e para-choques. O toca fitas cassete do qual ainda iria pagar muitas prestações. E, claro, o acendedor de cigarros cromado e cinzeiro idem. Tinha até um lugar especial no porta luvas que ele mesmo improvisou para abrigar suas cigarrilhas!

O pessoal que fazia este tipo de operação em geral tinha a angina totalmente resolvida e ficava sem sintomas por muito tempo.

A cirurgia era extremamente agressiva, mas muito resolutiva.
Em casos como o do nosso Zé Brasil, valia o preço a ser pago.
Mas o preço maior no desenvolvimento da cirurgia das coronárias quem pagou foi o seu grande mentor e um dos pioneiros, o argentino René Favaloro, cuja história cheia de emoções e tragédias caberia perfeitamente numa bela letra de tango.

“Desde que se fue, triste vivo yo,
caminito amigo yo también me voy.
Desde que se fue nunca más volvió.
Seguiré sus pasos, caminito, adiós” (2)​

(2) Trecho de CAMINITO (1926).

Letra de Gabino Coria Peñaloza. 

Música de Juan de Dios Filiberto.

Depois de brilhar fazendo suas pontes nas décadas de 70 e 80 na famosa e americana Clínica Cleveland, ele desistiu do que poderia ser uma aposentadoria tranquila nos EUA, da qual só quebraria o descanso para vez por outra fazer palestras muito bem pagas em universidades pelo mundo afora ou talvez operar um figurão.

Trocou tudo por uma tentativa de voltar pra sua terra natal e fazer um grande serviço de cardiologia por lá, um hospital escola, no qual ele formaria centenas de discípulos fazedores de pontes de safena.

A coisa deu pra trás, em parte devido às inúmeras crises políticas e financeiras de seu país. Em 2000, afundado em dívidas, o grande salvador dos corações dos outros deu um tiro no seu próprio coração. A música “Don’t Cry for Me Argentina” caberia bem neste cenário (3).

(3) Webber A L, Rice T: Evita, 1978

Porque será o Dr Favaloro preferiu continuar a trabalhar a aposentar-se? A cirurgia seria uma cachaça para os cirurgiões, um vício, no sentido bom da palavra, do qual não conseguem abandonar?

Que o ateste o não menos famoso Michael DeBakey (nome americanizado, o original era Michel Dabaghi, nascido de imigrantes árabes, daí seu narigão).

Sua história abrange um século inteiro, pois morreu ainda ativo, faltando menos de dois meses para seu aniversário de 100 anos.

Em Houston, no Texas, ele foi um dos principais autores e protagonistas da história da cirurgia cardíaca. Foi ele quem fez a primeira ponte de safena (não planejada, foi pra corrigir um acidente numa cirurgia em que uma coronária se rompeu) em 1964.

Dentre seus feitos, improvisava vasos sanguíneos artificiais com tubos do recém lançado Nylon, que ele mesmo fazia na máquina de costura de sua mulher.

Um dia, foi comprar Nylon numa típica loja de departamentos americana e o funcionário disse que não havia mais no estoque, mas sugeriu que ele experimentasse um novo tecido, mais resistente, chamado Dacron. Pronto, estavam criadas quase que por acaso próteses tubulares para vasos sanguineos de qualidade excepcional.

Dentre outras curiosidades da história do Dr Narigão, destaca-se a criação por ele do hospital cirúrgico móvel do exército (M.A.S.H.: Mobile Army Surgical Hospital), em que soldados feridos eram operados no próprio campo de batalha, com melhores resultados do que os que eram transferidos para longe e só depois operados.

Quem não se lembra do filme-comédia M*A*S*H, inspirado neste cenário?

E finalmente, foi novamente ator na vida real, ao ser submetido aos 90 anos a uma cirurgia de aneurisma de aorta através da técnica que ele mesmo criou.​

E lá estava o nosso José Brasil recebendo alta, com a ordem expressa de nunca mais por um cigarro na boca, angustiado pelo fato de que este sim era o pior vilão, terrível de se livrar.

“Dizem que quando o homem branco chegou às Américas, trouxe aos índios toda a sorte de doenças, como varíola, gripe, etc. Em troca, recebeu deles uma única praga, maior que todas as outras: o hábito de fumar a folha do tabaco” (4)​

(4) Jorge Filho, J P: Em Busca da Saúde Ideal. Manual Para Uma Vida Saudável. Editora Leitura Ltda. Belo Horizonte, MG – 2001.

Colombo deve ter ficado espantadíssimo, ao chegar do lado de cá do mundo e ver pela primeira vez um casal de índios expelindo fumaça pela boca e nariz e ao mesmo tempo conversando, com a maior naturalidade!

O tabaco rapidamente foi cultivado para fins de exportação no estado americano da Virginia, e em pouco tempo frequentava as cortes europeias. Mas em alguns lugares do mundo dito civilizado o cigarro custou um pouco a “pegar”.

Na Rússia dos czares, o cidadão flagrado fumando era condenado a ter seu nariz amputado! Terrível, não? Pode ser, mas nada que se compare ao que hoje se vê: fumantes que se autocondenam a ter seus membros amputados (principalmente as pernas) devido a obstrução de suas artérias provocada pelo tabagismo.​

Força Zé Brasil, você vai conseguir largar o cigarro!

Muitos pararam de primeira, outros na quinta ou sexta tentativa….

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